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IMACULADA CONCEIÇÃO
A Padroeira do CADC
Nas cortes de 1646, então reunidas em Lisboa, El-Rei D. João IV tomou a Virgem Nossa Senhora da Conceição por padroeira do Reino de Portugal. Ordenou igualmente que os estudantes na Universidade de Coimbra, antes de tomarem algum grau, jurassem defender a Imaculada Conceição da Mãe de Deus.
É também no dia 8 de Dezembro que os sócios do CADC se reúnem anualmente. Para quem quiser conhecer melhor a importância da Imaculada Conceição para a Universidade de Coimbra, disponibilizamos o texto de uma conferência proferida no CADC a 8 de Dezembro de 2003 pelo nosso sócio Prof. Doutor Fernando Taveira da Fonseca, posteriormente publicada no nº 3 da Revista ESTUDOS.
A Imaculada Conceição e a Universidade de Coimbra
Prof. Doutor Fernando Taveira da Fonseca
1. Em 8 de Dezembro de 1854, perante uma multidão de mais de cinquenta mil pessoas vindas de todas as partes do mundo, rodeado por 54 cardeais e 140 arcebispos e bispos, Pio IX definia e proclamava, pela bula Ineffabilis Deus, que a doutrina que afirmava ter sido a bem-aventurada Virgem Maria, no primeiro instante da sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus Omnipotente, em atenção aos méritos do Salvador do género humano, Jesus Cristo, preservada imune de toda a mácula da culpa original, havia sido revelada por Deus e que, por isso, deveriam nela constantemente e firmemente acreditar todos os fiéis.
Através desta formulação dogmática fazia-se a conciliação entre o privilégio especial da Virgem Maria – possível pela omnipotência divina – e a doutrina da redenção universal por Jesus Cristo: dirimia assim o magistério eclesiástico uma controvérsia antiga entre escolas teológicas; e aquela que, até esse momento havia sido uma “opinião piedosa”, largamente recebida pelos fiéis católicos e pelos seus pastores, celebrada no culto litúrgico oficial e tendo a seu favor uma plêiade notável de teólogos, tornava-se verdade de fé. A definição formal havia sido, além disso, precedida por um amplo movimento de solicitações de reis, imperadores e cortes, desde o século XVII, com uma constância e “com uma insistência de que há poucos exemplos na história” (E.C., 922); e nos pontificados de Gregório XVI (1831-1846) e Pio IX (1846-1878) “mais de 220 petições de cardeais, arcebispos e bispos (não contando com as de cabidos e ordens religiosas)” instavam para que o dogma fosse oficialmente proclamado. Não o fez Pio IX sem que antes tivesse dirigido a todos os bispos do mundo a encíclica Ubi Primum, pedindo-lhes que o informassem da devoção do seu clero e dos seu fiéis e do desejo que tinham de ver definido este mistério: das mais de 600 respostas recebidas (entre cerca de 750 possíveis), apenas cinco manifestavam algumas reservas quanto à oportunidade dessa definição (EUI, 922).
Fora longo o caminho percorrido até este momento: nele se entrecruzaram a devoção dos fiéis cristãos, a iniciativa de autoridades eclesiásticas locais e dos poderes políticos, a reflexão e discussão teológica dentro e fora das universidades, a intervenção papal em diversos momentos anteriores. A intenção de nos fixarmos no que, em particular, à Universidade de Coimbra diz respeito, não pode prescindir de uma mais ampla visão contextual que tentarei esboçar em traços muitos largos.
Um deles tem a ver com a celebração da festa litúrgica: sendo incerta a notícia que a faz datar do século V (com a designação de “concepção de Santa Ana”) no patriarcado de Jerusalém, conhece-se, porém, o cânone dessa mesma festa, composto por Santo André de Creta, a quem se devem os seus hinos litúrgicos, escritos na segunda metade do século VII; e à celebração litúrgica podem juntar-se os testemunhos de uma crença antiquíssima: o concílio de Latrão, reunido em 649, quando era papa Martinho I, declara no seu cânon 3º: “seja condenado aquele que não confessar, de acordo com os Santos Padres, que a sempre virgem e imaculada Maria, em sentido próprio e segundo a verdade, é Mãe de Deus”; em 680, no terceiro concílio de Constantinopla é aprovada a epístola sinódica de S. Sofrónio, na qual se lê: “encarnou aquele que era incorpóreo, tendo entrado no útero intacto e resplandecente de pureza virginal de Maria, santa, preclara e cheia de sabedoria das coisas de Deus, liberta de todo o contágio do corpo, da alma e da inteligência”.
Disseminou-se o culto e, com ele, esta ideia da santidade original da Mãe de Deus: em Espanha, provavelmente desde o século VII, em Nápoles e na Sicília, desde o século IX, em Inglaterra, a partir do século XI, época em que parece se acha também recebido na França. António de Vasconcelos refere que, em Coimbra, o bispo Raimundo Evrard (“homem justo e misericordioso, verdadeiro e pudico, nobre pelo sangue e pelos costumes”), instituiu a festa no ano de 1320, colocando-a “no oitavo dia do mês de Dezembro no qual dia a virgem gloriosa Santa Maria foi concebuda”, dotando-a com indulgências para atrair fiéis à sua celebração e com rendimentos para que se perpetuasse (Vasconcelos, 1904, p. 12).
Levantaram-se, contudo, algumas vozes contrárias. Assim é que, em 1240, Bernardo de Claraval, na sua epístola 174, censura os cónegos da catedral de Lião por terem introduzido no seu coro a festividade da Imaculada Conceição – e por, desse modo, manifestarem ter aderido à doutrina – afirmando que tal adesão não era conforme aos ensinamentos dos doutores da igreja e que esta forma de honrar a Virgem não estava fundada em razão, podendo apenas ser tolerada a gente simples. Conhecendo nós a profunda devoção de S. Bernardo à Virgem Maria – ele que A invocou como “Virgem entre todas singular” numa das mais belas orações que gerações sucessivas repetiram – dar-nos-emos conta de como a busca do fundamento racional como suporte da fé (a contínua demanda da fides quaerens intellectum) pode condicionar, por vezes dramaticamente, o posicionamento daqueles a quem cabe não apenas acreditar mas também indagar das razões de crer.
É a este nível que se situa outro dos traços que é importante delinear: o da discussão teológica, da oposição entre escolas que entendem diversamente a santidade de Maria. A autoridade de S. Bernardo terá influenciado teólogos eminentes como Pedro Damião, Pedro Lombardo (o mestre das Sentenças), Alexandre de Hales, S. Boaventura, Santo Alberto Magno. Como expoente máximo desta corrente estará Santo Tomás de Aquino, sobre cujo pensamento (também ele, mesmo assim, objecto de controvérsia) todos ou quase todos os teólogos da Ordem dos Pregadores, antes da definição dogmática, se fundaram para negar que a Virgem Maria tivesse sido isenta de pecado original desde o primeiro momento da sua Conceição.
Não sendo eu próprio teólogo, não resisti, contudo, a reler – cometendo a ousadia de apresentar-vos uma síntese dessa leitura – a célebre questão XXVII da terceira parte da Summa Theologica, onde expressamente (se bem que não exclusivamente) se versa esta matéria. Importa antes de mais salientar que é no âmbito da Cristologia que ela é abordada (depois de termos tratado da união de Deus e do Homem, resta-nos considerar aquelas coisas que o Filho de Deus, incarnado na natureza humana a Si unida, fez ou padeceu: e a primeira consideração tem a ver com a sua entrada no mundo). A rigorosa sistematização típica da Summa desenvolve-se depois em cinco considerandos acerca da Mãe de Cristo. O primeiro, acerca da sua santificação, desdobra-se em seis perguntas, correspondendo a outros tantos artigos: se a Virgem bem-aventurada foi santificada antes do seu nascimento; se foi santificada antes da infusão da alma (ante animationem); se em virtude da sua santificação foi liberta da concupiscência, obteve o privilégio de nunca ter pecado e alcançou a plenitude de todas as graças; se a sua santificação foi única.
É o segundo destes problemas (“utrum beata Virgo fuerit sanctificata ante animationem”) que apresenta a controversa – e posteriormente debatida – solução do Doutor Angélico. Nela se encontram mescladas concepções sobre o processo de gestação do feto humano e sobre o modo de transmissão do pecado original, com a fundamental afirmação teológica da universalidade da Redenção por Jesus Cristo. Deixemos falar Santo Tomás (que espero não atraiçoar na tradução que dele faço):
“O pecado original contrai-se ex origine (ou seja, por geração) uma vez que é pela geração que se comunica a natureza humana, à qual, com propriedade, diz respeito o pecado original; e isso acontece no momento em que a prole concebida recebe a animação (a infusão da alma). Donde se segue que após a animação nada impede que a prole concebida seja santificada, uma vez que continua no útero materno não para receber a natureza humana mas apenas para a aperfeiçoar”.
Depreende-se deste excerto que o santo teólogo estabelece uma clara distinção entre dois momentos, que ele considera materialmente separados no tempo: o da concepção e o da animação ou infusão da alma humana. Desta teoria encontramos em outros lugares uma formulação que, de algum modo, nos impressiona: no seu Manual de confesores e penitentes (que é indicado em diversas constituições diocesanas como devendo fazer parte do espólio de todos os pastores de almas), impresso em 1560, Martín de Azpilcueta, o doutor Navarro, tratando do aborto provocado pela violência sobre a mulher grávida, afirma: “ainda que nam se encorre em irregularidade, se ho menino concebido nam tinha alma ainda racional nem se duvidava disso. E ho menino começa a ter alma aos corenta dias, se he macho, e aos oytenta se he fêmea, segundo huma glosa recebida” (p. 145, nº 14). Dois séculos mais tarde, uma formulação semelhante, num Epitome de Theologia moral para instrução dos examinandos para Parochos e tambem para Confessores (ms. 92 da BGUC, p. 93): “a mulher que executa o aborto do próprio feto tem o rezervado, se elle for macho passados os 40 dias, se femea 80 dias pois então he so se anima”. Já o médico Ambroise Paré (1509-1590) afirmava que Deus infundia a alma no feto masculino ao quadragésimo dia e, no feminino, ao quinquagésimo depois da concepção (Delumeau, 1978, p. 328).
Não há dúvida que esta forma de entender – que é fruto de uma época e de um determinado estádio do conhecimento – vai repercutir-se na restante argumentação. Na conclusão do artigo II – “se a Virgem bem-aventurada foi santificada antes da infusão da alma (ante animationem)” Santo Tomás conclui pela negativa, apresentando o argumento crucial: “uma vez que a Virgem bendita tinha necessidade da redenção e da salvação, a qual vem por Cristo, não foi santificada antes da animação”.
E amplia depois a sua conclusão. Primeiramente, partindo do entendimento da gestação humana que atrás foi referido: só a criatura racional é sujeito de culpa (ou seja, antes da infusão da alma racional a prole concebida não está sujeita à culpa); além disso, a culpa – entenda-se, a culpa original – só poderia ser limpa através da graça e o sujeito da graça é apenas a criatura racional; portanto a Virgem não foi santificada antes de lhe ter sido infundida a alma racional.
Depois, acrescentando o argumento de ordem teológica: “se, de algum modo, a bem-aventurada Virgem tivesse sido santificada antes da animação nunca teria incorrido na mácula da culpa original: e, portanto, não necessitaria da Redenção e da salvação que vem por intermédio de Cristo; ora, é inconveniente que Cristo não seja o salvador de todos os homens”; e um pouco mais adiante: “se a alma da bem-aventurada Virgem nunca tivesse sido inquinada pelo contágio do pecado original, isso diminuiria a dignidade de Cristo como Salvador universal; a pureza da Virgem foi a maior depois de Cristo (ele, de facto, como Salvador, não contraiu o pecado original, foi santo no momento da sua concepção); mas ela contraiu o pecado original, tendo sido dele purificada antes do seu nascimento”.
É precisamente a mesma base cristológica que levará depois Raimundo Lúlio (c.1235-1315)e João Duns Escoto (1266-1308), (porventura animando-se mutuamente) a formular a conclusão contrária: se Cristo é Redentor universal e perfeitíssimo, deve ter o acto de mediação mais perfeito a respeito da pessoa em cujo favor intervém e também a respeito dele próprio, mediador. Cristo remiu a Virgem Maria da maneira mais eficaz, que consiste não em purificá-la de uma mácula contraída mas em preservá-la de a contrair. Isto porque assim era mais conveniente à dignidade do Redentor: “as glórias do Filho são da Madre sua”, dirá Gil Vicente na belíssima glosa ao hino “O Gloriosa Domina”. Decuit, potuit, ergo fecit: a célebre congruência de Eadmer é repetida por Escoto, o franciscano que defende perante a universidade de Paris a tese da Conceição imaculada de Maria depois de, segundo uma narrativa tradicional, ter recebido de uma imagem da Virgem um sorriso de aprovação e de encorajamento. O doutor subtil estabelece a distinção entre prioridade de natureza e prioridade de tempo: Maria foi filha de Adão pela natureza, mas foi santificada desde o primeiro instante da sua Conceição.
A universidade parisiense – cabeça de todas as universidades no que concerne à faculdade de Teologia – adopta a sua tese, decreta a celebração da festa (no que é seguida pelas de Oxford e Cambridge) e, mais tarde por estatuto de 1496, ordena que todos os seus doutores façam juramento de defender perpetuamente o mistério da Imaculada Conceição e determina não admitir aos graus quem não fizer tal voto e juramento. No seguimento de Escoto, numerosos teólogos, sobretudo da Ordem franciscana, tornaram-se defensores deste privilégio da Virgem Maria. De tal modo que, por volta de 1330, a assim chamada “pia opinio” (opinião piedosa) era, no dizer do cartuxo Henrique de Hasia recebida por quase todos: “fere ab omnibus de Ecclesia tenetur excepto uno ordine (EUI, p. 920). A Ordem religiosa que constituía excepção era a dos Dominicanos que, na convicção de se manterem na esteira de Santo Tomás, negavam a conceição imaculada.
2. A exposição que acabo de fazer, porventura demasiado longa, justifica-se, contudo, porque para a universidade de Coimbra se transportou esta controvérsia num dado momento da sua história. De um modo geral, poderemos dizer que a evolução posterior àquilo que acima narrámos se processa em três sentidos: uma crescente adesão do povo cristão, incluindo autoridades, comunidades, universidades e outras instituições, à opinião piedosa da Conceição imaculada e à celebração da sua festividade litúrgica; a continuação da disputa entre escolas teológicas – nomeadamente entre franciscanos e dominicanos; a intervenção do magistério eclesiástico no sentido de evitar que a divergência teológica degenerasse em escândalo, e, embora claramente favorecendo a tese imaculista, nunca condenando expressamente a opinião contrária (provavelmente porque sentia que uma corrente de opinião que se reclamava da autoridade de Santo Tomás era demasiado importante para poder ser contraditada sem sobressalto grande).
De algum modo, a formulação emanada do Concílio de Basileia, em 1439, sintetiza toda a situação: diz a sua constituição XXXVI que tudo o que se colocar em plena luz acerca da dignidade e da sublimidade da Virgem Mãe, reverte em louvor e honra do seu Filho; que, até então, se tinha disputado, em diversos lugares e também no seio da assembleia conciliar, uma difícil questão acerca da Conceição da Virgem gloriosa e do início da sua santificação (dizendo alguns que por algum tempo ela estivera sujeita ao pecado original, afirmando outros que Deus a remira de forma superior, preservando-a desse labéu); e definia que deveria ser aprovada, aceite e abraçada por todos os católicos, como inspirada na piedade e consonante com o culto eclesiástico, a fé católica, a recta razão e a sagrada escritura, a doutrina que sustentava que a gloriosa Virgem Maria, Mãe de Deus, por uma graça preventiva e eficaz do poder divino, nunca estivera submetida ao pecado original, mas que sempre fora imune de culpa actual e original, santa e imaculada; mais ordenava que não seria lícito a ninguém pregar ou ensinar o contrário.
Foi o mais longe que chegou o magistério eclesiástico, antes de 1854: e se bem que António de Vasconcelos (1894, p. 1092) afirme ser esta uma definição dogmática, faltar-lhe-á a formalidade da declaração explícita de tratar-se de verdade revelada, para além do facto de o Concílio de Basileia ter sido considerado ilegítimo, por dissidência com o papa Eugénio IV (o qual ordenou a prisão e o castigo de todos os que usassem dos decretos nele promulgados). As intervenções que se verificaram nos séculos seguintes vão no mesmo sentido: favorecer, louvar e fomentar o culto e a doutrina da Imaculada Conceição e proibir que seja publicamente pregada ou ensinada a doutrina contrária. Em contrapartida, proibir que pudesse ser taxada de herética esta última posição.
3. Em trabalhos de elevada erudição e com abundante suporte documental, versou já o Doutor António de Vasconcelos o tema que hoje nos ocupa: a Imaculada Conceição e a Universidade de Coimbra. Com base em notícias explícitas, ou inferindo judiciosamente, traçou uma linha de continuidade que faz remontar até aos primórdios a especial devoção da alma mater à Virgem Imaculada: D. Raimundo Evrard, quando, como já dissemos, institui a festa, em 1320, age como bispo de Coimbra a quem, por inerência, competia conferir os graus académicos; a imediata adesão da universidade a esta celebração parece muito provável, uma vez que, algum tempo depois, já em Lisboa, costumava, cada ano e de motu proprio, assistir à festa em alguma das igrejas onde ela se celebrasse, costume que se encontra documentado e consignado nos estatutos de D. Manuel (provavelmente de 1503); criada a faculdade de Teologia, talvez na 2ªmetade do século XIV (não me deterei, contudo, neste problema que mereceu, recentemente, a atenção de um probo historiador que propõe outra interpretação para a documentação conhecida – Antunes, 1997), a natural influência e o domínio doutrinal da Universidade de Paris (que havia, em 1387, condenado as proposições anti-imaculistas do dominicano João de Monçon) teriam, sem dúvida, uma repercussão directa no que se ensinava na universidade portuguesa, qualquer que fosse a sua sede, reforçada esta influência pela incorporação, em 1453, do estudo franciscano de Lisboa; e não terá sido de somenos importância o facto de, mudada para Coimbra, se terem formado nas escolas parisienses muitos dos mestres que aqui vieram exercer o professorado, assim como a introdução, no elenco das cadeiras grandes da faculdade de Teologia, de uma cátedra na qual se lia Escoto no seu comentário a Pedro Lombardo. Expressamente afirma António de Vasconcelos que “são numerosos os trabalhos escriptos por theologos da nossa Academia versando o assunto, dos quais alguns chegaram a ver a luz pública, outros ficaram apenas manuscritos: - exposições didáctico-polémicas, apostilas escolares, e sermões em grande número” (Vasconcelos,1904, p. 22). Entre elas avultam as obras de Francisco Suarez e de Fr. Egídio da Apresentação. Por outro lado, quer os Estatutos de 1559, quer os que vieram a vigorar por mais tempo, os de 1597 (ratificados em 1653), confirmavam a celebração da festa de Nossa Senhora da Conceição, deslocando-se, na véspera e no próprio dia, todos os membros da comunidade universitária, sub poena praestiti iuramenti, ao Colégio de Tomar, da Ordem de Cristo, para participar nas celebrações litúrgicas, devendo o Reitor contribuir para elas com uma participação monetária – 3000 réis, segundo os Estatutos de 1559; um cruzado de oferta assim como uma esmola de 3000 réis, velas e incenso para a missa, de acordo com os de 1597.
Nos primeiros anos do século XVII ter-se-á reacendido a controvérsia. O professor que há pouco citámos – o beneditino Fr. Egídio da Apresentação – dá à estampa, em 1617, os seus De Immaculata Beatae Virginis Conceptione ab omni originali peccato immune libri quatuor, no título claramente indicando a posição que assumia. No prólogo ao leitor assinala as ondas alterosas que, na Hispânia, se haviam levantado acerca da Conceição da Virgem, as quais, para além da tempestade das disputas, tinham conduzido, em mais de um lugar, ao derramamento de sangue (Lectori meo, fl.4). Mais adiante na obra, refere que, em 1615, em diversos lugares da Andaluzia, vários teólogos e pregadores haviam ensinado e proferido, perante numeroso público de homens e mulheres, que a opinião favorável à Conceição Imaculada, não somente era nova, e recebida apenas pelos ignorantes, mas também herética, inventada por Satanás e merecedora da fogueira. Frei Egídio diz escrever depois de a tormenta que nos anos anteriores tinha fustigado “quase toda a Espanha” ter sido pacificada por acção do monarca, Filipe III, sob cujos auspícios elaborara o seu trabalho e por cujo mandado o editara.
Terá sido este reacender da polémica que motivou Filipe III a dirigir-se a todas as universidades da península, recomendando-lhes que escrevessem a Sua Santidade a manifestar-lhe o seu sentir nesta matéria. Em Coimbra, a missiva régia, datada de 21 de Novembro de 1617, encontrou bom acolhimento, excepto nos professores dominicanos, Frei Vicente Pereira e Frei João Aranha. Foi provavelmente por este motivo que o Claustro Pleno se escusou de tomar uma posição formal (“que, se [sua Majestade] fosse servido que a universidade dese seu pareser em forma sobre esta matéria por escrito e alegasois seria mais conveniente ser sua Mag.e servido pedir a sua Santidade que mandasse a esta universidade desse seo parecer”); e remeteu para uma Junta de Lentes – todos os de Teologia e os de Prima e Véspera das outras faculdades – a resposta a dar ao rei: à Junta, presidida pelo Reitor, que se reuniu em 16 de Dezembro, faltaram aqueles dois professores dominicanos (o secretário assinala esta ausência, bem como a de um lente de Medicina, no final do assento). Deliberou-se então que os termos da resposta ao monarca – de cariz claramente prudencial – seriam estes: “que a opinião que esta universidade sempre teve depois que he fundada he que a Virgem Nosa Senhora não teve pecado original, e que esta se defendeo sempre e leo nella. E que isto mesmo sentião todos os doutores presentes em particular, e que juntamente se sinificasse por palavras a Sua Santidade que esperava esta universidade que sua Santidade definise esta parte e que isto desejava”. (Vasconcelos, 1904, p. 77). Entretanto, havia o Papa Paulo V, por um decreto de 31 de Agosto de 1617, autorizado a doutrina da Imaculada e reiterado a proibição de que a contrária fosse exposta ou defendida em público.
O problema volta a colocar-se, e agora com maior acuidade, após a Restauração de 1640. Na Historia Seráfica Chronologica da Ordem de S. Francisco na Província de Portugal, Fr. Fernando da Soledade dá conta do muito que “trabalharão e conseguirão [os filhos de S. Francisco] em applauso da Conceyção puríssima da Senhora”, de modo que, como diz, “não houve Bispado, Cabido ou Congregação aonde os nossos Frades não procurassem que se fizesse à Mãy de Deus semelhante obsequio” (p. 619). Nessa sequência, “intentarão mover a el Rey D. João IV que era devotíssimo deste Santo mysterio, a que o jurasse e fizesse jurar pellos Estados do Reyno. E para disporem melhor esta notável empreza, diligenciarão com o próprio Monarca ordenasse à universidade de Coimbra não desse grão a sugeyto algum sem o tal juramento”.
O rei, com efeito, através da mesa da Consciência e Ordens, enviou provisão para que fosse examinada uma petição do “provincial de S. Francisco” subscrita por alguns lentes e doutores da própria universidade, “em que pediam a sua magestade mandace com juramento defender nesta universidade a pureza da Virgem Nossa Senhora que fora concebida sem pecado original. A resolução do Claustro foi a de que, “consideradas bem as razões e grandes fundamentos que se apontaram, não havia por que alterar o juramento que nesta universidade se faz e profisão de fé nas ocasiões que o Estatuto manda, antes que se ofereciam grandíssimos inconvenientes para se jurar o que os ditos padres pretendiam” (Vasconcelos, 1904, p. 79). Os inconvenientes aduzidos levaram mesmo alguns dos que, juntamente com o provincial franciscano, haviam assinado a petição, a retratarem-se e a votarem em sentido contrário.
Parece haver aqui alguma contradição com os termos da resposta de 1617. Mas, entre a declaração de que a opinião da universidade era favorável à Imaculada, associando-lhe mesmo o desejo de ver essa doutrina definida como de fé, e o assumir de uma posição formal selada por juramento – a que a própria autoridade eclesiástica não obrigava – abre-se um espaço no qual há lugar para as razões de conveniência. E, para além da autoridade de Santo Tomás de Aquino, na qual os dominicanos expressamente se louvavam, não teria sido a intervenção dos franciscanos ressentida como inoportuna, talvez ditada por rivalidades de escola, como parecem ter insinuado os lentes na sua resposta (segundo se infere da réplica de Frei Manuel da Esperança sumariada por Frei Fernando da Soledade)? Como não considerar interferência abusiva a petição de uma família religiosa que não contava membros seus entre o professorado universitário, de algum modo sugerindo como insuficiente a homenagem que o mais eminente corpo intelectual do Reino prestava à Mãe de Deus? Na sua resposta (ainda segundo o cronista da religião seráfica) o Reitor aduzia fundamentalmente razões de prudência, achando desnecessário ir mais além daquilo que expressamente ordenava a autoridade da Igreja.
D. João IV, porém, insistiu. Não lhe agradara a posição da Universidade, que ele transmitira aos frades menores e que foram objecto de réplica vigorosa por parte de Fr.Manuel da Esperança, como já referimos. E ainda antes de as Cortes terem eleito Nossa Senhora da Conceição como Protectora e Defensora de Portugal e seus domínios e de os três Estados do reino terem jurado defender, ainda que à custa da própria vida, esta prerrogativa de Maria Santíssima, ele enviara uma carta ao Reitor (16 de Janeiro de 1646), apontando-lhe o exemplo de Salamanca que, desde 1618, impunha aos seus graduados o juramento da Conceição, e, junto com ela, o formulário desse mesmo juramento; e encomendava-lhe, “movido de devação particular”, que desse as ordens necessárias para que “muy pontualmente” se viesse também assim a proceder na universidade de Coimbra. Terá sentido alguma dificuldade o Reitor em dar imediata execução ao desejo régio, pois só a 20 de Julho apresentou a carta ao Claustro, tendo este decidido unanimemente que se fizesse o juramento com a solenidade possível. Escolheu-se o dia 28 de Julho, sábado; alguns dias depois, a 8 de Agosto, o secretário, chamado propositadamente para esse efeito aos aposentos do Reitor, deixou exarada a memória do que se passara: convocaram-se todos os colégios e todos os professores; de véspera puseram-se luminárias nos edifícios colegiais, nas casas dos professores e, “cercandose toda por cima”, na universidade; repicaram os sinos “asi da dita universidade como de todos os colégios, tangendose charamelas, trombetas e atabales; o Geral de Santa Cruz, D. Leonardo de Santo Agostinho, foi chamado a celebrar, na Capela da Universidade, um solene pontifical a que assistiram os professores revestidos das suas insígnias; pregou o beneditino Frei Leão de Santo Tomás, lente de Véspera de Teologia e, acabado o Pontifical, “postos de giolhos o dito senhor Reitor, Lentes e Doutores diante o altar da Capella Mor, o dito Geral revestido de Pontifical com bago e mitra em pe posto ao lado do altar, em cujo nicho principal se pôs a imagem de Nossa Senhora da Luz, leo em voz alta o juramento”. Dizia a universidade, pela sua voz, que “não contente com insinar, defender e ter para si esta sentença mais pia, desde que foi fundada”, neste dia a prometia “defender, ler, pregar, e ensinar publica e particularmente”; que “atenta a ordem de sua Magestade”, fazia estatuto que valesse e tivesse força para sempre de “em nenhum tempo” poder ser admitido aos graus quem não fizesse o mesmo juramento (Vasconcelos, 1904, p. 82-85). Uma lápide que ainda hoje vemos na capela lateral do lado do evangelho recorda este momento.
Entretanto, a 25 de Março de 1646, domingo de Ramos, D. João IV prestara o seu próprio juramento, na Real capela do Paço da Ribeira, dedicando o Reino à Virgem Maria – como o fizera D. Afonso Henriques –, fazendo-se seu vassalo e tributário (o seu tributo seria, cada ano, de 50 cruzados de ouro à Senhora da Conceição de Vila Viçosa), obrigando-se a defender até derramar o sangue, que ela fora concebida em graça, desnaturalizando de seus reinos a todos os que sentissem em contrário.
Não terá sido puro artifício de retórica esta cominação. Sentiram-no com alguma dureza, embora a outro nível, os religiosos de S. Domingos. Gozavam eles, até este momento de um estatuto privilegiado no conjunto dos professores da Universidade: haviam ocupado, desde 1557, a cadeira de Prima de Teologia, numa sucessão interrompida apenas de 1597 a 1616 – correspondente ao magistério do jesuíta Francisco Soares, e do seu confrade Cristóvão Gil que o substitui por um breve período – a ponto de se julgarem proprietários dela; além disso, não se submetiam ao percurso normal da carreira universitária – que implicava a ascensão gradual das cadeiras inferiores às mais importantes – antes transitavam directamente dos seus estudos internos (sem que haja, em algum tempo, menção à sua participação em concursos) para posições cimeiras do professorado na faculdade de Teologia (cadeira de Véspera; substituição, seguida de propriedade, da cadeira de Prima ou directamente para esta; cadeira de Escritura).
Ao tempo da celebração do juramento da Imaculada Conceição os religiosos dominicanos (era então lente de Prima de Teologia o seu confrade Frei Diogo Artur) não compareceram. O Rei estranhou-lhes a ausência: e ordenou ao Reitor que os chamasse e deles indagasse “a razão que tiverão para […] se apartarem do commum do Reyno, e do commum dessa Universidade, em matéria de tanto serviço de Deos e meu”. O correio que levava esta missiva esperaria pela resposta, pois não ia a outra coisa (Vasconcelos, 1904, p.85). Não a deve ter obtido, porém, de acordo com as expectativas do monarca.
Uma representação redigida então por Frei Domingos do Rosário – o dominicano irlandês Daniel O´Daly que desempenhou papel importante quer na promoção da sua Ordem em Portugal quer na diplomacia da Restauração (Almeida, 1934; Prestage, 1926) – afirma que D. João IV resolvera obrigar os “lentes da Ordem de S. Domingos na Universidade de Coimbra, com pena de perderem suas cadeiras”, a fazer o juramento da Conceição. É interessante a exposição que ele faz dos inconvenientes que, em sua opinião, se seguiriam de uma tal decisão: não poderia um príncipe secular “sem peccar mortalmente […] usurpar jurisdição spiritual nem adiantarse à Igreja em materia de doctrina senão esperar della a declaração dos pontos duvidosos”; seria imprudente D. João IV se assim enfrentasse a “família dominicana” a qual, desde que se fundara, sempre tivera “grandes sujeitos na igreja de Deus” e era religião muito aceite de “todos os príncipes da Cristandade”, correndo o risco de, por esta via “grangear muitos desafeiçoados”; ao privar os lentes de S. Domingos das suas cátedras, estaria a desterrar da universidade a mais sólida doutrina teológica, recomendada pela autoridade da igreja. Não deixava de referir que “avendo servido a Ordem de S. Domingos a Universidade de Coimbra desde que se fundou ate o dia de hoje nas mayores cadeiras com tanta satisfação e tão eminentes sujeitos […] quando no fim de tantos annos de serviços podia esperar grandes prémios […] não deixa de parecer rigor verse desestimada e lançada fora afrontozamente da ditta Universidade sem nunca aver commetido a menor culpa contra V. Magestade mais que seguir a seu mestre (sendo Doctor de toda a Igreja Catholica e Príncipe da Theologia recebido por tal em todas a universidades da Christandade” (doc.1).
Estas razões não demoveram D. João IV. Frei Diogo Artur, mesmo autorizado pelos seus superiores a fazê-lo, como atesta um papel do provincial dos dominicanos, de 1685 (a que adiante nos referiremos), não se submeteu ao juramento. Em 1648, subia à cadeira de Prima de Teologia um lente de “carreira”, o beneditino Frei Leão de Santo Tomás, que ingressara no corpo docente em 1613, obtendo por concurso a catedrilha de Gabriel, e que ultimamente, quando o surpreendemos a pregar na solenidade do juramento, ocupava a cadeira de Véspera (a carreira universitária fazia-se pela transição sucessiva e ascendente de uma cadeiras a outras, as quais constituíam uma gradação cuja cesua mais importante as dividia entre cadeiras menores, ou catedrilhas e cadeiras maiores, com destaque, entre estas para as de Prima e Véspera). Com uma única excepção, a de Fr. Valério de Moura (o qual acabou por fazer o juramento da Conceição e, mesmo assim, ficou na simples condição de lente condutário – 1706 –, sem ter obtido a propriedade de nenhuma cátedra) não mais, até à Reforma de 1772, os filhos de S. Domingos fizeram parte do corpo docente universitário. Mesmo nos anos subsequentes a esta a sua participação irá ser diminuta.
Em vão se dirigia ao monarca o provincial, Frei Manuel Leitão, em 1685, como já fizera anteriormente, segundo diz, “propondo […] as razões de justiça que esta sua Província tem a se lhe restituir a cadeira de Prima de Theologia da Universidade de Coimbra” e oferecendo, desde logo, um papel no qual se antecipavam as possíveis objecções dos lentes universitários a esta pretensão dos dominicanos e a réplica a cada uma delas. Aí se afirma mais uma vez que a privação da cadeira (na óptica do provincial, era apenas suspensão do seu exercício) fora motivada pela recusa do professor em jurar a Imaculada Conceição; e também que tal recusa se devera ao voto de obediência às “apertadas Leys desta religião” que, “debaixo de graves penas mandão que todos os religiosos da dita Ordem tenhão e defendão tudo o que tem e ensina o Angélico Doutor Santo Thomas lume e mestre da Igreja cuja he expressa a doutrina contraria na sobredita questam; as quais leys elles não podem quebrantar, fazendo o dito juramento sem cometer grave peccado” (doc. 4).
Duas posições opostas, sustentadas com igual tenacidade. O juramento da Imaculada Conceição foi de imediato aplicado aos novos graduados (o primeiro proferiu-a no próprio dia 28 de Julho de 1646) e a sua fórmula, depois de modificada, incorporou-se aos Estatutos, nos quais aparece logo depois da longa profissão de fé (que, anualmente, os professores eram obrigados a proferir, assim como todos os que recebiam o magistério em Teologia ou o doutoramento nas outras faculdades). Numa primeira parte recordam-se, no juramento da Imaculada, as circunstâncias históricas da sua instituição; depois, prosegue: “aqui neste acto presente prometo, e juro firmemente, de minha própria e livre vontade a Deus todo Poderoso e a Vós, Santíssima Mãe sua, de defender, publica e particularmente, que vós, Virgem bem- aventurada, santa, immaculada e bendita entre todas as mulheres, pellos merecimentos de Jesus Cristo Filho vosso previstos desde a eternidade, fostes totalmente preservada da mácula do pecado original, por particular favor e privilegio da divina graça, de sorte que em nenhum instante a contraístes: e que fostes sempre pura, santa, imaculada e cheia de graça. E prostrado humildemente diante da Vossa sagrada imagem, vos faço esta promessa, assim Deos me ajude e estes santos Evangelhos” (Estatutos, 1654, liv.IV, tít. XIV, p. 299).
Proclamado o dogma, em 1854, julgou-se então desnecessário continuar a prestar este juramento. E havendo sido suprimido o préstito (juntamente com todos os outros, excepto o da rainha Santa) por carta régia de 1790, ficou subsistindo a festa, no dia oito de Dezembro, celebrada com especial esplendor, depois que duas disposições emanadas, uma em 1717, outra em 1775, assim o recomendaram. Além disso, com base nos Estatutos de 1772, em todos os exames ou provas académicas, o candidato invocava o auxílio divino através de uma fórmula latina tradicional que António de Vasconcelos testemunha estar ainda em vigor em 1904: “Depois de tantos e tão grandes trabalhos, chegou o dia em que, perante vós, devo prestar contas dos meus estudos; antes que comece, porém, que seja em meu auxílio a Santíssima e Indivídua Trindade, o Pai Incriado, o Filho Unigénito, e o Divino Amor que de um e de outro procede; e também a imaculada Virgem Maria, protectora desta Universidade” (Vasconcelos, 1904, p. 95).
Conservamos ainda, felizmente, a celebração festiva. E neste momento, é-me particularmente grato poder nela participar, inserido nesta comunidade, uma comunidade de memória e que eu definiria também, recuperando a expressão de Boaventura de Sousa Santos, como sendo uma “comunidade interpretativa”, atenta aos tempos, o tempo passado e o tempo presente, e neles procurando o sentido das coisas, o significado das palavras, o conteúdo dos gestos.
Não é possível, de facto, falarmos sobre estas temáticas sem nos interrogarmos sobre o que hoje entendemos acerca deste mistério da Senhora Imaculada, preservada do pecado original. Correndo uma vez mais o risco de ultrapassar as minhas competências – submetendo-me, naturalmente, a qualquer juízo crítico – ouso colocar perante vós a reflexão de Paul Ricoeur (na leitura que dela fiz há já alguns anos – Fonseca, 1986), na sua obra Finitude et Culpabilité, uma reflexão filosófica que poderá auxiliar esta caminhada, a que no início me referia, da fides quaerens intellectum.
O seu ponto de partida é a definição do homem como “lábil”, quer dizer constitutivamente marcado pela possibilidade do mal moral: a “labilidade” é a forma específica da limitação humana que consiste em o indivíduo não coincidir consigo mesmo. De facto, no homem convergem a afirmação original (o verbo, a totalidade prática ou ideia de felicidade, e o eros ou felicidade acessível ao ´coração´) e a negação existencial que se manifesta na diferença entre eu e o outro (a unidade do destino humano realiza-se na pluralidade dos destinos individuais), na diferença do eu consigo próprio (o indivíduo é contingente, podia não ser assim, ou mesmo não ser) e, finalmente, na tristeza do finito que se nutre de todas as experiências primitivas que incluem a negação na sua própria afirmação: falta, perda, temor, pesar, decepção, dispersão, irreversibilidade da duração. É assim que a limitação humana é imediatamente sinónima de fragilidade e esta torna possível o mal em muitos aspectos. Porém a “labilidade” é um conceito antropológico e a culpa um conceito ético: o enigma é o “salto” da possibilidade de cair à queda efectiva. Para surpreender o momento da passagem seria preciso fazer uma reflexão de novo estilo, concentrando-se na confissão com que a consciência reconhece o “salto” e nos símbolos do mal mediante os quais se exprime essa confissão.
É na exploração da simbólica do mal que Ricoeur aborda o “mito adâmico”: mito porque esta crónica sobre o primeiro homem e o primeiro casal humano não pode encaixar-se dentro do tempo histórico nem do espaço geográfico; mas, em contrapartida, representa a conquista da sua função simbólica que consiste em universalizar a experiência, estabelecer a tensão entre um princípio e um fim, e investigar as relações entre o original e o histórico; adâmico porque este é o único mito verdadeiramente antropológico, tendo como intenção fundamental colocar no homem (e não em um princípio paralelo e oposto ao princípio do bem) a raiz do mal. Ele nasce da experiência penitencial do povo judeu que encara a culpa não apenas nas suas manifestações concretas mas na sua raiz (o “coração” do homem) e não apenas como individual mas como comunitária (o pecado do mundo que João Baptista refere). É a história de um povo interpretada à luz das categorias de chamamento, desobediência e exílio (as quais, por sua vez “explicam” a experiência concreta da deportação) que se projecta numa representação mítica da ruptura (símbolo de todas as rupturas históricas) concentrada num só homem e num único momento, mas desdobrada numa narrativa que transforma o “acontecimento” único e instantâneo em dramatização; e é aí que, ao lado de Adão (a humanidade) aparecem Eva e a serpente e se introduz uma gradação: a passagem da inocência à culpa apresenta-se como um deslizar imperceptível passando pela tentação da mulher. A mulher é, deste modo a mediação da debilidade, a fragilidade do ser humano. Esta fragilidade reside no mesmo tipo de finitude que é constitutivo do homem, uma finitude capaz de resvalar para o “infinitamente mau”, presa fácil da sedução por perversão do limite constitutivo da natureza humana. Todas as mulheres e todos os homens são “Adão”, todos os homens e todas as mulheres são “Eva”; todas as mulheres pecam em Adão; todos os homens se deixam seduzir em Eva. “Frailty, thy name is woman, lemos no Hamlet” (Ricoeur, 1982, pp. 404-405, tradução minha).
É muito interessante que esta mediação da fragilidade, simbolizada na mulher Eva (a mãe dos viventes), tenha encontrado o seu contraste na mediação da Redenção (que é grande proposta antropológica do Cristianismo), realizada em Cristo e significada em Maria. Eva – Ave (a desobediência original e a obediência radical) foi um mote glosado de muitas formas na literatura e na parenética. Na antropologia da redenção a prioridade vai para a Virgem, ela é a primeira redimida. Segundo a expressão de José Jacinto Farias, a Imaculada Conceição “manifesta, de um modo eminente, a transfiguração do homem que se opera pela participação no mistério de Cristo, com o qual por graça o homem é chamado a configurar-se […] Paradigma de uma antropologia cristã, a Imaculada Conceição é o caso eminente da redenção pela graça, a que ela corresponde, na plena liberdade do “ecce ancilla” […] é a confirmação da nova criação oferecida por Cristo” (Farias, 2000, col. 512-513).
E já que pedi emprestadas, ao longo deste texto, tantas palavras, vou, para terminar, buscar mais algumas, de subida beleza, a mestre Gil Vicente, quando canta a Senhora Gloriosa:
Ó cedro nos campos, estrela no mar
Na serra ave Fénix, uma só amada
Uma só sem mácula e só preservada
Uma só nascida sem conto e sem par
Do que Eva triste ao mundo tirou
Foi o teu fruto restituidor
Dizendo-te Ave, o embaixador
O nome de Eva te significou
E nós que faremos, os salvos por Ela
Nascendo em miséria, tristes pecadores,
Senão tanger palmas e dar mil louvores
Ao Padre, ao Filho e Espírito e a Ela?
Coimbra, 8 de Dezembro de 2003
DOCUMENTOS
NB: Para além da documentação impressa inclusa na bibliografia, mormente em Vasconcelos (1894 e 1904), foram utilizados três documentos da Biblioteca da Ajuda sob a cota 50-V-32: uma representação endereçada a D. João IV por Frei Domingos do Rosário, fls. 470-473 (aqui designada como doc. 1); uma réplica elaborada por um autor franciscano, fls. 474-478v. (doc. 2); e uma longa resposta a esta réplica, pelo autor do primeiro “papel”, fls. 450-464 (doc. 3). Nenhum destes “papéis” está datado mas é indubitável que terão de sê-lo entre 1646 e 1648. Foram-me estes documentos cedidos pelo Prof. Doutor António de Oliveira, a quem deixo aqui expresso o meu agradecimento.
Utilizei ainda uma exposição ao monarca, feita pelo provincial dos dominicanos em 1685, que designo como doc. 4 (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Mesa da Consciência e Ordens, maço 60).
Tratando-se de documentos bastante longos não se torna viável a sua transcrição.
BIBLIOGRAFIA
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- Almeida, Manuel Lopes (1954) – A devoção portuguesa à Imaculada Conceição, sep. de Estudos.
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- Apresentação, Frei Egídio da (1617) – De immaculata Beatae Virginis Conceptione ab omni peccato originali immuni libri quatuor, Conimbricae, apud Didacum Gomez de Loureyro Academiae Typographum.
- Aquino, Tomás de (1727) – Summa Theologica, Lugduni, Sumptibus Andreae Laurens.
- Azpilcueta, Martín de (1560) – Manual de confessores e penitentes. Coimbra, Joam de Barreira.
- Delumeau, Jean (1978) – La peur en Occident, Paris, Fayard
- Dictionnaire de Théologie Catholique, dir. de A. Vacant, E. Mangenot, Paris, 1903-1967, s. v. Peché originel; Immaculée Conception.
- Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana,(EUI, s.d.) Barcelona, Hijos de J. Espasa Editores, s. v. Concepción (Inmaculada).
- Epitome de Theologia moral para instrução dos examinandos para Parochos e tambem para Confessores (Epitome) (ms. 92 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra)
- Estatutos da Universidade de Coimbra (1559), introd. e notas críticas de Serafim Leite, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1963.
- Estatutos da Universidade de Coimbra (1653), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1987.
- Farias, José Jacinto (2000) – “Imaculada Conceição”, in Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Lisboa-S.Paulo, Editorial Verbo, 2000.
- Fonseca, Fernando Taveira da (1986)– “Notas acerca do pensamento religiosos sobre a mulher: um sermão do século XVII”, in A mulher na sociedade portuguesa, Actas do Colóquio, Coimbra, Instituto de História Económica e Social.
- Prestage, Edgar (1926) – Frei Domingos do Rosário, diplomata e político, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926.
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- Soledade, Fr. Fernando da (1721)– Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco na provincia de Portugal, tomo V, Lisboa, Antonio Pedrozo Galram.
- Vasconcelos, António de (1894) – “A doutrina da Immaculada Conceição e a Universidade de Coimbra”, O Instituto, vol. XLI, pp. 1073-1105.
- Vasconcelos, António de (1904) – O mysterio da Immaculada Conceição e a Universidade de Coimbra. Memória histórica apresentada ao Congresso Universal Mariano de Roma, Coimbra, Imprensa da Universidade.
- Vicente, Gil (1968) – Obras completas, Lisboa, Sá da Costa.